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Mundo, espaço e lugar: uma crítica à teoria dos dois mundos atribuída a Platão

“A distinção é escolar: poucas ideias na história da filosofia são tão difundidas e assumidas quanto aquela que afirma que os diálogos de Platão, essencialmente, apresentam uma teoria ou doutrina dos dois mundos, uma separação irrevogável entre o “mundo das Ideias”, e o “mundo sensível”, este nosso mundo aqui, imitação imperfeita do primeiro, e que, por isso mesmo, passa como uma cópia inferior, sombra da verdade.
De saída, se não fosse essa definição para a filosofia platônica tão comum e rigidamente estabelecida, não entenderíamos nada da expressão “teoria dos dois mundos” de Platão: para não falar de “teoria”, um conceito que pode gerar as maiores dificuldades, ficaríamos totalmente perplexos se parássemos para pensar no que significa afirmar que a filosofia de Platão pode ser resumida numa separação de “dois mundos”. Um mundo apenas já não seria razão suficiente para uma longa reflexão filosófica? A palavra “mundo” é muito comum na linguagem corrente, revestindo-se de uma polissemia impressionante, sendo também uma questão crucial na história da filosofia, o que por si só já seria uma primeira justificativa para o projeto deste livro, o de mostrar o papel que Platão assume nesse processo de formação de um conceito ou definição de mundo.
Não obstante, a hipótese precisa defendida neste texto é a de que o rótulo “teoria dos dois mundos”, quando aplicado para definir a essência do pensamento de Platão, além de prescindir de uma consideração mais satisfatória do que significa “mundo” propriamente, também prescinde de uma análise mais detida da filosofia dos diálogos, e, a bem da verdade, os adeptos de uma tal interpretação não têm clareza com relação a seus pressupostos e os sentidos na base de suas afirmações. Em linhas gerais, sabemos das implicações que uma inadvertida concepção da teoria dos dois mundos impõe à filosofia platônica: seria como se o filósofo fosse alguém que desejasse habitar um outro mundo, munido de uma teoria do conhecimento absurda e inatual, cujas contrapartes práticas seriam o autoritarismo político, o intelectualismo moral e uma escatologia amedrontadora”.

George Matias de Almeida Júnior

Aceito os Termos de uso e condições.

Este livro argumenta contra a interpretação da “teoria dos dois mundos” imputada à filosofia de Platão. A diferenciação entre δόξα e ἐπιστήμη no final do livro V da República não promove uma separação de duas totalidades ou dois mundos opostos, o mundo inteligível e o mundo sensível. A partir do discurso no Timeu sobre a geração do κόσμος (27c-40d), em particular a introdução do ser vivo inteligível como modelo do mundo, e do discurso sobre o terceiro gênero, o “espaço” (χώρα) (47e-61c), mostramos que a teoria dos dois mundos se choca contra a postulação da unidade do κόσμος e as reflexões platônicas sobre τόπος e χώρα em ambos os diálogos, particularmente no Timeu. A análise dos significados de “mundo” e de “espaço-lugar” renovará algumas questões inerentes à teoria das Formas inteligíveis e um esboço da história da teoria dos dois mundos mostrará de que modo essa interpretação foi projetada sobre a filosofia de Platão. A difundida interpretação da “teoria dos dois mundos” não corresponde à essência do pensamento de Platão, ao contrário do que se acredita. Essa interpretação não pressupõe uma consideração satisfatória do que significa “mundo” propriamente e vai contra uma análise mais detida da filosofia dos diálogos, não apenas contra a ontologia e a epistemologia das obras, mas contra os princípios básicos da cosmologia e da topologia platônicas. De saída, será crucial um estudo sobre as definições, as origens, os pressupostos e implicações da teoria dos dois mundos, pois, apesar da disseminação da interpretação, podemos notar vaguezas, incoerências e lacunas em seus pressupostos e métodos usuais de análise. O livro apresenta e discuti as críticas ontológicas-epistemológicas dirigidas à teoria dos dois mundos por G. Fine, F. Gonzalez e M. Marques, entre outras, às quais somos favoráveis, e propõe que esse viés standard seja enriquecido e complementado pelo estudo dos conceitos (assim como as metáforas e as imagens) de “mundo” e de “espaço-lugar”. O livro recoloca as questões sobre o que é a teoria dos dois mundos, o que é mundo e o que é espaço-lugar, para mostrar que, apesar da história da teoria dos dois mundos e de sua ampla aceitação entre os estudiosos, imagens e conceitos fundamentais do pensamento platônico explícitos no Timeu contrariam frontalmente a suposição da existência de dois mundos separados e opostos. Destaca-se, em especial o princípio da unicidade do κόσμος e a teoria do espaço-lugar em Platão, cuja análise ilustrará nuanças cruciais na noção de “separação”, que o âmbito do vir a ser e da sensibilidade não é irreal ou menos real e que a ontologia platônica mantém um princípio unificador no qual a heterogeneidade dos gêneros ou dos τόποι sensível e inteligível é afirmada num contexto dialético de reconhecimento das complexidades e integração das diferenças entre o que aparece e o que é inteligido. A partir disso, contra a opinião predominante, olivro defende a ideia de que não há dois mundos na filosofia platônica, e sim dois (ou mais) aspectos ou eventualmente graus de determinação distintos de um único mundo.

Introdução

 

1. Sentidos, pressupostos, origens e implicações da teoria dos dois mundos

1.1. Introdução

1.2. O que é a teoria dos dois mundos e onde a encontramos na obra de Platão?

1.3. A difusão da interpretação da teoria dos dois mundos

1.4. Pressupostos

1.5. Origens

1.5.1. Kant

1.5.2. Nietzsche

1.5.3. Arendt

1.6. Críticas à imputação de uma teoria dos dois mundos a Platão

1.7. Mundo, espaço e lugar: uma alternativa às alternativas existentes da teoria dos dois mundos

Conclusão

 

2. A versão “standard” da teoria dos dois mundos

2.1. Introdução

2.2. Breve delineamento de República V, de acordo com a versão standard

2.2.1. A posição de Fine e a via standard de discussão sobre a teoria dos dois mundos

2.2.2. A posição de Marques

2.2.3. A posição de Ferrari

2.2.4. A posição de Fronterotta

2.2.5. A posição de Gonzalez

2.3. Comentários gerais sobre a via standard da interpretação da teoria dos dois mundos

Conclusão

 

3. O sentido ontológico-epistemológico de mundo, espaço e lugar

3.1. Introdução

3.2. Mundo como problema

3.3. As palavras para mundo

3.3.2. Visão pré-filosófica de mundo

3.4. Quellenforschung sobre κόσμος

3.5. Espaço e lugar

3.5.1. Uma consideração preliminar importante

3.5.2. O uso de termos locativos em Platão

3.5.2.1. Grupo 1: escatologia e lugar

3.5.2.2. Grupo 2: a alma enquanto “lugar”

3.5.2.3. Grupo 3: Ser é ser em algum espaço-lugar

3.5.2.4. Grupo 4: Formas inteligíveis, realidade sensível e espaço-lugar

3.5.2.5. Fédon

3.5.2.6. Fedro

3.5.2.7. República

Conclusão

 

4. O ser vivo inteligível (νοητόν ζῷον) do Timeu

4.1. Introdução

4.2. O modelo do mundo como o ser vivo inteligível (νοητόν ζῷον)

4.3. Síntese das passagens relevantes sobre os seres vivos

4.4. Algumas das principais discussões sobre o modelo do mundo no Timeu

4.4.1. Keyt e a falácia de divisão

4.4.2. Parry e o modelo holístico forte do νοητόν ζῷον como mundo inteligível

4.4.3. Thein e a deflação da teoria dos dois mundos

4.4.4: Tomando posição com relação ao ser vivo inteligível

4.5. Comentários suplementares sobre vida, ser e espaço-lugar em Platão

4.5.1. Fronterotta e uma crítica da crítica da teoria dos dois mundos

4.5.2. Ser e vida: crítica a um consagrado paradigma de leitura

4.5.3. Ser, vida e teoria dos dois mundos

Conclusão

 

5. Xώρα como princípio de diferenciação

5.1. Introdução

5.2. O que é o espaço-lugar?

5.2.1. Contexto interno

5.2.2. Timeu e o “receptáculo”

5.3. Aporias nas interpretações do terceiro gênero

5.3.1. Elementos para χώρα como espaço

5.3.2. Elementos para χώρα como matéria

5.3.3. O problema do substrato

5.4. Algumas das principais discussões sobre a χώρα

5.5. A crítica de Aristóteles ao Timeu

Conclusão

 

6. A biografia do mundo inteligível

6.1. Introdução

6.2. Platão e a Academia antiga

6.3. Fílon de Alexandria

6.4. Outros autores do século I: Timeu de Locres, Aécio, Plutarco, Aquiles

6.5. O século II: Alcínoo, Albino, Apuleio, Tauro, Numênio, Ático

6.5.1. Alcínoo

6.6. Clemente de Alexandria

6.7. Orígenes

6.8. Plotino

6.9. Agostinho

6.10. Aristóteles

Conclusão

 

7. O mito razoável (εἰκὼς μῦθος) do Timeu

7.1. Introdução

7.2. Burnyeat e o “mito razoável” do Timeu

7.3. Εἰκώς

7.4. Mito e λόγος

7.5. A tradução e análise de Timeu 29c4–d3

7.6. Raciocínio prático (practical reasoning)

7.7. As leituras de Betegh, Mourelatos e Brisson da interpretação de Burnyeat

7.7.1. Betegh

7.7.2. Mourelatos

7.7.3. Brisson

Conclusão

 

Conclusão

 

Referências bibliográficas

 

Anexo A: ocorrências de χώρα e τόπος nos diálogos

George Matias de Almeida Júnior é bacharel, mestre e doutor em filosofia pela UFMG, com licenciatura pelo instituto Claretiano. Dedica-se desde a graduação à pesquisa em filosofia grega antiga, e especialmente a obra de Platão. Participou de diversos eventos nacionais e internacionais e publicou alguns artigos sobre aspectos variados da filosofia grega antiga, incluindo a questão da atopía, ou do não-lugar da filosofia, bem como sobre outros temas dos diálogos platônicos. No doutorado se dedicou a combater a  consagrada interpretação da teoria dos dois mundos atribuída a Platão, mostrando sua inviabilidade. Atualmente exerce docência no ensino Médio e acaba de lançar um livro com os resultados de sua tese.

Título: Mundo, espaço e lugar: uma crítica à teoria dos dois mundos atribuída a Platão
Autor: George Matias de Almeida Júnior
Editora: Ed. PPGFIL-UFMG
Páginas: 565
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN: 978-65-01-27619-9
DOI: 10.5281/zenodo.14531836