Segundo a tese de Snell, teríamos agora um autor – Hípias – que potencialmente anteciparia a atitude de Platão e de Aristóteles em relação a seus predecessores filósofos. Se Platão e Aristóteles citaram Hípias, e mais: se eles se apropriaram até mesmo de certo jargão filosófico introduzido por Hípias e tomaram a estrutura de uma obra sua como modelo para a abordagem filosófica de temas cosmológicos presentes no discurso teológico da poesia épica, então fará todo sentido procurar por outras instâncias em que Hípias possa ter sido citado ou emulado, para além dos trechos que foram esmiuçados por Snell em seu artigo de 1944. […] Chamarei de método de Snell a extrapolação do método empregado por Snell em seu artigo para outras passagens [inicialmente] platônicas e aristotélicas com características semelhantes – especialmente a combinação sequenciada de citações de poetas-teólogos e naturalistas –, como forma de atestar a adoção de Hípias como fonte para determinadas passagens. […] Como se verá, para os usuários do método de Snell, a simples ocorrência de textos paralelos com estrutura similar à identificada por Snell nas passagens do Crátilo, do Teeteto e de Metafísica A.3 passará, com o tempo, a ser tomada como signo inequívoco da presença de Hípias. (p. 102-103)
A conclusão de que Hípias seria um doxógrafo, ou um quase-doxógrafo, ou ainda o inventor da doxografia, que prosperou entre os sucessores de Snell, deriva basicamente do fato de que Snell partiu de um contexto doxográfico para propor sua teoria sobre Hípias. Trata-se, portanto, de uma projeção especulativa anacrônica sobre uma evidência legítima (os paralelos identificados por Snell). Falar em protodoxografia é muito diferente de afirmar que Hípias era um doxógrafo ou um historiador da filosofia. O prefixo ‘proto-’ quer (ou deveria) indicar justamente que Hípias ainda não é um doxógrafo e não implica que ele tivesse qualquer intenção de sê-lo ou de produzir uma história da filosofia. Implica somente que autores posteriores – estes sim agindo como doxógrafos – podem ter tomado trechos de sua obra como fonte de citações enquanto eles mesmos realizavam suas próprias coletas [en]doxográficas. (p. 278)
Gustavo Laet Gomes
Saiba mais